Primeiros passos
Estudo
mostra como naturalistas brasileiros formaram o embrião de uma
comunidade científica do país no século 19 por meio de pesquisas
de campo, viagens de exploração e publicação de artigos em
revistas nacionais de literatura.
Por: Sofia Moutinho
Acampamento da Comissão Científica de Exploração retratado por José Reis de Carvalho, naturalista e pintor oficial da expedição de 1859 (Acervo do Museu Histórico Nacional).
Ainda hoje alguns historiadores da ciência no
Brasil relutam em afirmar que já existia uma comunidade científica
ativa em território nacional antes da criação das primeiras
universidades, na primeira metade do século 20. Apesar de não
haver instituições exclusivamente voltadas para a pesquisa,
estudos realizados desde a década de 1980 têm refutado essa visão
e mostrado que os cientistas brasileiros do século 19 puseram o pé
na estrada e produziram bastante.
Esse novo olhar sobre a ciência brasileira
naquele período ganhou mais fôlego com um estudo feito pela
bióloga Rachel Pinheiro. O trabalho foi realizado durante seu
doutorado
em Ensino e História de Ciências da Terra pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
Pinheiro, que desde o mestrado estuda a produção
científica desse período, analisou artigos e correspondências de
naturalistas brasileiros da época e concluiu que eles foram os
pioneiros na construção de uma comunidade científica no país,
além de resgatarem uma produção científica anterior de
naturalistas luso-brasileiros que era por vezes renegada por
estrangeiros.
Reunidos em instituições como o Museu Nacional
(hoje vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, os naturalistas discutiam suas
pesquisas, trabalhavam em laboratório e organizavam viagens para a
investigação da natureza brasileira.
Uma expedição pioneira nesse sentido foi
promovida pela Comissão Científica de Exploração, criada em
1856. Formada por naturalistas brasileiros de áreas como zoologia,
botânica e geologia, a comissão partiu para o Ceará em 1859, em
busca de riquezas naturais a serem catalogadas e estudadas.
A Comissão Científica de Exploração foi a
primeira iniciativa para formar uma comunidade científica
brasileira sólida
“A Comissão Científica de Exploração
foi a primeira iniciativa para a formação de uma comunidade
científica brasileira sólida”, diz Pinheiro. A pesquisadora
explica que a expedição teria sido criada em resposta a uma
carência de trabalhos científicos nacionais sobre o Brasil. “Os
cientistas brasileiros estavam irritados pela supervalorização do
que os estrangeiros escreviam sobre as riquezas de um país que não
era deles.”
Segundo Pinheiro, a expedição não ficava atrás
das realizadas por estrangeiros. Dirigida pelo naturalista Francisco
Freire Allemão (1797-1874) – que era médico e professor
particular das filhas do imperador –, a comissão contou com os
melhores naturalistas brasileiros, como Guilherme de Capanema
(1824-1908) e Manoel Ferreira Lagos (1816-1871). O escritor
Gonçalves Dias (1823-1864), mais conhecido pelo poema Canção
do exílio e outras obras literárias do que por sua atuação
como naturalista, também participou – foi ele o encarregado da
compra de livros e instrumentos na Europa para aparelhar a
expedição.
Outra ciência
A ciência daquele período difere muito da
praticada atualmente. Os naturalistas possuíam uma formação
polivalente e pertenciam ao setor da elite ligado ao governo. Muitos
exerciam cargos públicos e eram empregados do Museu Nacional.
Praticamente não existia ciência que não fosse financiada pelo
governo imperial, embora a formação dos cientistas se desse na
Europa.
“Era comum que um naturalista atuasse em mais
de uma área, como por exemplo, zoologia e botânica ou geologia”,
explica Pinheiro. “Além disso, eram desenhistas, escritores e até
mesmo poetas”.
-
- Vista da cidade cearense de Icó, onde a Comissão Científica de Exploração montou acampamento por 40 dias, pintada por José Reis de Carvalho (Acervo do Museu Histórico Nacional).
Contrariando as expectativas de encontrar no Ceará ouro e
diamantes, a comissão retornou ao Rio de Janeiro trazendo mais de
15 mil amostras botânicas, além de animais empalhados. Quase nada
chegou de minerais, pois o navio que os transportava naufragou. O
material coletado foi enviado para o Museu Nacional, onde ainda está
abrigado.
Outra contribuição da comissão foi a
descoberta de ferro e salitre que serviram para a produção de
pólvora. Esse achado foi decisivo na época, pois o Brasil vivia um
desconforto político com Paraguai que, anos mais tarde, acabaria
culminando no maior conflito armado já ocorrido na América do Sul.
Divulgação científica brasileira
A pesquisa de Pinheiro trouxe novidades sobre a
rotina dos cientistas brasileiros do século 19. Ao contrário do
que pensava a historiografia tradicional, seu estudo mostra que eles
não só possuíam produção escrita, como também mantinham um
forte intercâmbio científico com naturalistas da Europa. “Freire
Allemão, por exemplo, tinha muitos trabalhos publicados em latim na
Europa e recebia trabalhos para publicar no Brasil”, conta
Pinheiro.
A produção dos naturalistas era publicada em
veículos de literatura e variedades, como a Revista Brazileira
e a Guanabara
Como não existiam revistas especializadas em
ciência no país, a produção dos naturalistas era publicada em
veículos de literatura e variedades, como a Revista Brazileira
e a Guanabara. Segundo Rachel, as tentativas de
criação de revistas de ciência fracassavam por falta de
assinantes e dinheiro. Mas os naturalistas não desistiam e
publicavam nas revistas comuns seus artigos e trabalhos que eram
traduzidos e enviados para os cientistas da Europa.
Nessa época, ainda não havia uma preocupação
em divulgar as ciências naturais entre o público leigo e mesmo o
que saía nessas revistas era escrito em linguagem técnica para os
cientistas. A produção dos naturalistas era dirigida para os
especialistas estrangeiros. “Não havia reconhecimento do trabalho
científico na sociedade brasileira, apenas entre um setor da elite
muito restrito. Por isso os trabalhos científicos eram produzidos
para os estrangeiros.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line
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